Eu conto

Os contos nesta página, salvo exceções creditadas,
são de Maria Angélica Ferrasoli, com registro na Biblioteca Nacional


Alvo anoitecer


“Você vê, Alvinha, quanta injustiça? Jogada de um lado para outro sem nem poder ver você, depois de tanto tempo dando tudo de melhor pra aqueles esses dois?” Ela me olhava sem ver com aquelas bolinhas de gude verde embaciadas pela névoa do ressentimento, enquanto o sol chegava de leve ao beiral da janela em que finalmente nos reencontrávamos. Era o final do outono, quando tudo parecia tocado por uma melancolia suspensa, com um céu sereno de nuvens iluminadas em tons lilases, azuis e amarelos, e no qual o brilho puro da primeira estrela já se fazia sentir.
Olhei a rua de pedras tortas à procura de algum conhecido, mas ela se encostou ainda mais a mim e me abraçou. O ar tinha uma reverberação boa, de tarde indo embora, e de algum beco vinha um cheiro apetitoso de carne assada. Deixei-me ficar embalada no seu abraço, mas durou pouco, o suficiente apenas para que ela recobrasse o fôlego e a visível vontade de chorar. Então começou a me contar sobre o asilo em que estivera nos últimos quatro meses, um lugar emporcalhado cuja única beleza estava no pequeno jardim nos fundos, em que conseguira com sucesso plantar uma muda de margarida e outra de goiabeira, e ainda assim às escondidas, pois não lhe era permitida qualquer atividade além do chá da tarde com as demais internas, quase sempre tomado dentro do casarão porque a maioria já não podia se locomover.
“Mas eu fugia, sabe Alvinha? Só uma vez me descobriram, quando fui tomar chuva de madrugada, só uma, e mesmo assim valeu a pena, porque viram quem sou eu, isso sim, uma mulher apaixonada pela vida, quase uma poeta, não um caco velho que colocam onde querem e deixam lá, não é? Não é, Alvinha?”. Ela agora respirava muito perto de mim e eu podia sentir o cheiro agridoce de sua velhice, das mãos flácidas recendendo ao talco depois do banho semanal e do perfume de sândalo impregnado na combinação sob o vestido de florzinhas coloridas. Sua presença, embora tristonha, era quase um alento naquele dia que morria sem pressa, despejando uma última claridade antes da chegada do inverno. Como um cobertor morno ou uma rede macia banhados de sol, em que nos deitamos aconchegados para apreciar o vento gelado que enfim virá.
Pensei no quanto a amava e sentira sua falta naqueles meses de distância. Mesmo muito velha, ela enchia a casa com sua presença, suas lembranças de moça feliz e poeta delirante. Passara a vida toda servindo ao marido até a morte dele, e a dois filhos rebeldes a quem dedicara um amor desmedido que näo lhe valeu na hora da verdade. Nos últimos anos, em que sua decrepitude se acentuara vorazmente, dera para declamar as poesias que fizera em épocas errantes; suaves umas, como o romance quase infantil que mantivera por décadas com o falecido; atrozes outras, cuspidas na cara de seus algozes. Mas o que indignava mesmo a familiares e visitantes eram os poemas eróticos que trazia à baila com volúpia, como se novamente os vivesse na pele flácida e enrugada. Entortava o pescoço, girava os olhos com lascívia, mordia os lábios murchos e poderia mesmo fazer o papel ridículo de que a acusavam, não fosse a verdade explícita de cada gesto e o sentimento neles depositados, que só observadores atentos poderiam apreender.
Mas ali não era esse o caso. Andavam muito ocupados para se preocupar com a velha, embora os tivesse parido, amamentado e criado sem um único resmungo além daquele que apenas a caneta revelava a leitores inexistentes, quando a vida lhe sobrava e podia enfim traduzir em poemas seus prazeres e penares. Mas isso fora quando ainda podia enxergar com clareza a linha do papel, e ninguém além dela se lembrava da existência destas palavras. Guardadas na memória, como velhos tesouros a que ninguém faz falta, perdiam-se pelos labirintos de sua senilidade, mas ela sabia driblar as armadilhas do tempo inventando as rimas faltantes, e então ria como uma criança que faz travessuras ou descobre enfim o verbo que lhe faltava para se expressar. “Alvinha, Alvinha, já vivi demais. Mas ainda posso poetar para frente o sonho que ficou lá atrás”, brincava.
Eu sentia seu bafo morno como um carinho naquele sol de despedida, seus dedos pequenos com as pontas geladas a me tocar. Pensei que a conhecera muito tarde, quando já não era possível ajudá-la além de dividir os biscoitos molhados no chá ou remexer no jardim que os filhos acabaram cimentando para espantar as formigas. Sua prova definitiva de fidelidade aconteceu numa noite em que admirávamos a lua cheia, num céu espelhado de prata, e ela me confessou que, se soubesse, uivaria em desvario para homenagear tamanha beleza. Foi sua tentativa um dos motivos pelos quais a levaram para o asilo dois meses depois, acusada de loucura das mais graves, mas nós duas sabíamos que não era assim.
Quando escureceu de todo e a noite enfim chegou ela cochilava de leve ao meu lado, branca e bela como uma boneca de porcelana, e me esgueirei de leve para não despertá-la. No ar dançava a pergunta aflita que fizera momentos antes sobre a imortalidade dos sentimentos. “Vai se lembrar de mim, Alvinha, vai se lembrar da velha quando eu tiver finalmente partido?”
Descolei-me de seu braço me esgueirando lentamente, enquanto a empregada sem modos a empurrava quase adormecida para o sofá. Ouvi-a resmungar e começar a ressonar de leve – uma velha princesa de outras épocas em seu longo sonho de existir. Tanta existência.... Pensei que em algumas espécies a vida às vezes pode durar além do suportável, mas logo me arrependi, porque sabia que ela conhecia seu final próximo e, não tendo com quem compartilhar o turbilhão desse redemoinho último, talvez o único que realmente valesse a pena lançar aos quatro ventos antes de escoá-lo definitivamente e para nunca mais, aproximara-se de mim deixando-me o registro das horas e a reverberação dos sentidos de sua humanidade, o que era mais do que uma dádiva para um pobre ser sabidamente tão irracional como eu.
Então senti novamente o cheiro de carne assada, de um salto alcei a janela e não pude deixar de uivar com gosto para a gorda lua linda que despontara. A noite, afinal, ainda era o paraíso de todas as cadelas livres e poetas aprisionadas. E prometia.

(conto premiado pelo concurso de contos da Prefeitura de São Caetano do Sul)





O dia em que roubaram a cordilheira

Qualquer chileno conhece a cordilheira como uma criança aos pais. Está lá, diariamente, com suas enormes encostas azuis coroadas de branco. Se não é possível vê-la, continua-se a senti-la. É uma presença visível e invisível, exatamente como o olhar de um pai ou uma mãe. Olhos que guardam, que vigiam, às vezes ostensivamente, noutras com doçura ou até melancolia. Se dependesse dela, nenhum chileno deixaria seu país, da mesma forma que as pragas das videiras nunca conseguiram transpô-la, purificando ainda mais o bom vinho nacional.
Pois bem. O fato é que poucos haviam bebido naquele dia. Era setembro de 1973 e o Chile estava mais agitado do que um dos tantos vulcões que agora dormem tranqüilamente em seu solo. Mas não demorou muito para que o convulsionado país subitamente parasse, quando a mesma pergunta foi repetida em cada boca: Onde está a cordilheira? Aquela gigantesca cadeia de pedras seculares, aquela geleira ímpar do lado esquerdo do mapa simplesmente havia sumido. Em Santiago não chovia naquele dia, ao contrário dos anteriores, e todos sabiam assim que não estava nevando nos cumes. Mas a cordilheira, em qualquer dos pontos cardeais, havia desaparecido. “Foi a ditadura!”, gritou um homem recém-barbeado, cujo sofrimento contido se podia ver nos olhos miúdos. “Eles a derreteram como ao Palácio de La Moneda”, disse, em desvario. Os militares à sua volta agiram rápido e o prenderam. Mesmo assim, um ousou perguntar baixinho: “Será que foi mesmo o general?”
De todos os cantos do Chile as vozes começaram a crescer. “Roubaram a cordilheira?” “Foi levada pelos americanos?” O novo governo, ainda às voltas com o intrincado labirinto golpista que o içara ao poder, fez hastear imediatamente a bandeira para pronunciamento nacional, pois aquilo só podia ser coisa dos socialistas descontentes: “Fica decretado, portanto, que os subversivos seqüestradores da cordilheira têm prazo de 24 horas para devolvê-la a seu devido local, sob pena de fuzilamento sumário”. Mas o fato é que as horas passavam e a cordilheira não aparecia. Crianças, velhos, jovens, gente de todas as idades saia às ruas e se encarapitava nos pontos mais altos, como no Cerro San Cristobal, para tentar visualizar uma nesga que fosse, uma pontinha de gelo. Nada. Até mesmo os hotéis da grande estação de esqui de Vale Nevado haviam desaparecido. O Chile estava vazio, e o coração dos chilenos tinha um buraco no centro.
Na saída de Santiago, nos casebres pobres à beira do rio Mapucho, onde o solavanco do golpe militar recente reduzira a pó faixas e retratos do presidente deposto e a lama das últimas chuvas, a ausência da cordilheira era sentida como a derradeira perda. Para Izabel, a jovem que gostava de contar as estrelas mais próximas das montanhas e inventar para elas nomes da história chilena, que adorava estudar, só um grande cataclismo, tão grande quanto aquele golpe real poderia ter feito sumir o mar de pedras querido. Ao ligar a televisão ficou sabendo que geólogos chamados às pressas perscrutavam cada palmo do imenso deserto lunar que se formava, e a única descoberta até então era que ali nada podia florescer pelo gelo secular que ainda brotava do solo. Helicópteros também sobrevoavam a área limítrofe entre o Chile e o resto da América, mas não havia vestígios ou sinais de alterações geodésicas. Nas altas esferas discutia-se a viabilidade de divulgar ou não o inusitado a outros países, e até que ponto a novidade favorecia ou podia tornar mais difícil a situação do país.
Tudo isso me contou um grande amigo chileno, que teve de deixar sua terra clandestinamente, sob risco de ser condenado à morte, pois apoiava o governo deposto. Segundo ele, a notícia do sumiço não chegou a ser veiculada por nenhum canal internacional porque os acontecimentos se precipitaram. A cordilheira desapareceu na primeira luz de 23 de setembro, apenas 12 dias após o golpe militar. Naquela mesma manhã, muito próximas das alturas, mas ainda longe do alcance das montanhas, as mãos de uma mulher voavam ágeis e suaves sobre o bairro da Providência. Sentada em frente à janela de uma casa em que a convergência dos quintais de qualquer ângulo fazia vista à cordilheira, não se deu conta do ocorrido até ouvir no rádio a convocatória do governo. Ao sabê-lo, ajeitou os esvoaçantes cabelos, ergueu os olhos diante do inexplicável e suspirou: “Já se vai”, enquanto lágrimas corriam lentas por seu belo rosto.
Exatamente às 22h30 daquele dia morria no Chile seu amado, o poeta Pablo Neruda. Para a menina Izabel, que da beira do rio Mapucho acompanhava com um binóculo cada instante celestial, foi nesse momento preciso que a cordilheira de súbito renasceu. “Penso que desapareceu para dar passagem à grande voz de Neruda, que é também a voz dos chilenos, para deixar livre de toda opressão este que sempre foi dos mais belos cantos pela justiça que já se ouviu. E depois da morte do poeta voltou, com olhos e braços imensos para proteger nosso povo”, escreveu a jovem em seu diário naquela madrugada, sem esquecer de registrar o surgimento de uma nova estrela. É evidente que o caso todo foi abafado nos longos anos de censura que se seguiram no país, e poucos poderiam hoje contar com precisão ou mesmo credibilidade história tão fantástica. Para a maioria, no máximo uma espessa neblina escondeu os Andes por algumas horas naquela data, uma neblina como nunca mais. Izabel, porém, que anos mais tarde se tornaria uma importante escritora, compartilhando com o amigo que me revelou esse fato a grande emoção daqueles dias, imediatamente batizou ao novo astro estelar Neftalí, nome com que também nasceu Neruda. Acredite ou não, ainda está lá, intensamente luminoso para quem quiser ver, e sobre o cume mais elevado da esplêndida cordilheira chilena.



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A casa dos cartazes


Quando a casa ficou em pé – em pé, mas não pronta – ele colocou na parede nua a primeira folhinha com destaque para o 1º de Maio, data da mudança. “Trabalhador unido jamais será vencido!”, dizia a página do mês, com o desenho de um punho erguido. A mulher não gostou. Preferia a imagem do Cristo ou da Nossa Senhora no lugar, mas, como havia a desculpa de comemorar o novo endereço, relevou.

Depois veio o cartaz da greve geral, no centro da parede da sala. O da anistia, distribuído na assembleia do estádio. A mulher bateu o pé: não tinham dinheiro para comprar quadros, mas aquilo já era demais. Ele passou o domingo ajeitando um quadro colorido da Nossa Senhora em cima da cama, com uma pêra pendente que, uma vez acionada, iluminava de azul, vermelho e amarelo a basílica de Aparecida. Ela aceitou mais um cartazinho que pedia educação para todos e, afinal de contas, tinha a imagem de uma criança tão bonita....

Aí os filhos entraram na faculdade e ela quase perdeu o controle. Dividiam o quarto e as ideologias. “A UNE é nossa voz!”; o discurso de Chaplin, um congresso de Comunicação e outro de História, frases de um tal Vianinha estampadas na porta, que nas paredes já não sobrava espaço. Cartazes, pôsteres, camisetas de protesto. A mãe pegou o martelo e colocou ela mesma o velho crucifixo sobre a porta. Abandonado desde a mudança, ganhou pintura de verniz e brilhava acima de todas as demais mensagens. Sorriu, satisfeita.

Enquanto isso, pai e filhos traziam novos cartazes, panfletos, bandeiras, filipetas. Às vezes, um substituía o outro, sinal dos tempos: nova greve, emenda Dante, Diretas Já! Vizinhos e visitantes habituais já haviam se acostumado à inusitada decoração e, para desespero da dona da casa, até colaboravam com um ou outro pôster. Só uma vez divergiu o casal de irmãos: a menina insistia em colocar o folhetim de poemas; ele achava alienação. O pai, romântico inveterado, apoiou a filha: sem perder a ternura, jamais.
  
Então o tempo foi passando, o filho se casou, a filha mudou para longe. A mãe foi embora primeiro, ele continuou na casa com as lembranças e os cartazes – nas eleições, agora permitidas, grandes faixas invadiam a varanda e os portões da frente. Nas visitas dos netos, contava a história de seu país passeando os olhos pelas paredes com as crianças no colo. Conservou até o final a fé na democracia, na igualdade, na justiça, expressa na voz e no cimento que mantinha em pé aquela casa. Quando teve de seguir também, levou sob a rigidez do paletó a camiseta preferida: “Hoje eu não tô bom!”.
  














Vovô (trisavô) Giustiniano Ferazzoli/ Photo Almeida





Pizza brotinho

Tinha voltado de São Paulo havia poucos dias, e durante a viagem de ônibus até Belo Horizonte lera numa revista reportagem sobre a seção de objetos perdidos no metrô de São Paulo. À noitinha, já em casa, comentei com minha mulher a infinidade de coisas que desaparecem por aí todos os dias, e entramos numa discussão semântica: achados e perdidos ou perdidos e achados? “Perdidos e achados, defendi. Porque a pessoa perde primeiro; depois, se tiver sorte, acha”. “Não concordo, respondeu. A seção só existe porque alguém achou. Então o que vale é esta referência”, considerou. Como ninguém deu o braço a torcer achamos melhor parar a conversa por ali e recuperar outro tipo de perdido, o tempo: afinal, eu tinha passado mais de 15 dias distante, e estávamos ambos com saudades. Naquela noite, alegre com nosso reencontro e enfim relaxado, adormeci rapidamente. Mas, talvez ainda impressionado com a reportagem, sonhei com uma fileira de velhinhas banguelas exigindo suas dentaduras numa destas seções. Elas batiam bengalas e guarda-chuvas coloridos sobre o balcão, esbravejavam e faziam tanto barulho que acabei acordando, suado, sem reconhecer de imediato que estava no meu bom e velho quarto.
Duas semanas depois, quando já tinha esquecido o assunto, descobri que tinha perdido a chave de casa e da gaveta do escritório, que ficavam num molho só penduradas num chaveiro do Pateta, presente da minha mãe quando eu tinha dez anos. Valia muito mais do que as chaves, das quais poderia tentar fazer novas, então comecei a procurar, primeiro com certo desleixo, depois quase desesperadamente, revirando sofás, gavetas e até os brinquedos das crianças. Como não achei, resolvi apelar para a conhecida estratégia de “refazer os passos”: todos os dias eu tirava o Pateta do porta-chaves da cozinha e pendurava no passador da calça; o movimento inverso no final da tarde, ao chegar do trabalho. A chave do carro deixava em local separado, por medo de roubo, seqüestro-relâmpago, essas coisas. Foi assim que me lembrei que no dia anterior não usara o automóvel, pois tinha deixado com minha mulher, seguindo de ônibus para o trabalho. À noite, como ela viera mais cedo, não precisei da minha chave para abrir a porta. “Só posso ter perdido no ônibus!”, pensei, já buscando na lista telefônica o número da viação. Fui informado de que existia sim uma seção de Perdidos e Achados; ficava no ponto final da linha, mas o atendimento era em horário comercial; ou seja, teria de dar uma escapada do trabalho para tentar achar meu querido Pateta.
Na hora do almoço, com o chefe em reunião, avisei a secretária de que sairia um pouco antes e voltaria mais tarde do que o habitual, pois precisava visitar um cliente. “Tá”, ela resmungou, sem desviar os olhos da revista de celebridades que lia por baixo da pasta de relatório, como fazia sempre. Ao chegar na viação fui logo procurando por um “Perdidos e Achados” ou vice-versa, mas só encontrei a plaquinha “Informações” no final do corredor.
-         Por favor, onde é a seção de perdidos e achados?, perguntei a um jovem com uniforme de motorista que descansava num banco.
-         Aí mesmo, nas “Informações”, respondeu.
Devo confessar que fiquei um pouco frustrado. Esperava encontrar uma placa “Perdidos e Achados” e fotografar no celular para mais tarde voltar a provocar minha mulher na discussão semântica, mas ela definitivamente não existia. Entrei na pequena sala e dei de cara com uma moça muito jovem e bonita. “Procuro um chaveiro do Pateta com duas chaves. Devo ter perdido ontem no ônibus”, anunciei. Ela me disse para esperar “um instantinho” e começou a revirar gavetas e pequenas caixas iguais às de sapato, repletas de quinquilharias. Em todas muitas chaves, isqueiros, pelo menos duas escovas de dente, pentes e bijuterias. “Moço, aqui não está. Como o senhor perdeu ontem pode ser que o pessoal ainda não tenha trazido para cá. Ou então....”
-         O quê?, perguntei
-         Bem, se esse pateta tinha algum detalhe valioso, alguma pedra preciosa ou ouro pode estar no outro quarto, onde ficam objetos maiores e mais caros.
-         Olha, o chaveiro tem valor sentimental para mim, foi um presente. Mas a única atração que ele pode ter além da patetice é que veio da Disney, nos Estados Unidos. Isso impressionava antigamente, mas nunca valeu nada....
De qualquer forma, estava curioso para ver o que eles guardavam no quartinho anexo e, como ainda tinha algum tempo livre, pedi à funcionária da viação que me levasse lá. Ela abriu a porta, acendeu a luz e foi quase como visualizar um resumo da reportagem que eu lera na viagem até Belo Horizonte. Guarda-chuvas, livros (deu pra reconhecer até um exemplar de Drummond), canetas, blusas, bolsas, carteiras, muitos documentos de identidade e duas caixinhas de jóias. “São anéis”, ela respondeu, seguindo meu olhar. Desviei a direção e comecei a xeretar nas estantes: radinhos de pilha, CDs, Ipods, um enorme bicho de pelúcia (como alguém esquece isso?) e até uma garrafa térmica. Já pensava em dizer obrigado e até logo quando vi o embrulho. Por alguma razão misteriosa, aquele pequeno pacote amarrado com barbante, em formato arredondado, me lembrava muito as pizzas brotinho que meu pai comprava nas pastelarias do centro da cidade. O cheiro forte de azeite impregnou o ar, mas só minha memória o sentiu, e fiquei um tempo sem respirar para tentar retê-lo.
-   Nossa, o que você tem nesse embrulho? – falei rápido, para disfarçar a emoção. É uma pizza brotinho?
A moça sorriu e me explicou constrangida que não sabia o que era isso – pizza sim, gostava muito; agora, brotinho, nem imaginava o que fosse. Tente iniciar um esclarecimento, mas ela ficou séria e revelou:
-    Olha moço, trabalho aqui há quase cinco anos e nunca soube o que tem nesse embrulho. A funcionária que saiu me disse que foi uma das primeiras coisas a chegar na seção, há uns 30 anos, e jamais foi aberto. Às vezes tenho a impressão que ele treme, então fecho a porta e saio correndo. Sou muito medrosa, confessou, às voltas com um risinho meio nervoso.
De minha parte eu continuava a sentir cheiro de pizza da minha infância. Quantas tardes esperando pela chegada do meu pai com aquele pratinho embrulhado, pendurado num barbante! O óleo fazia desenhos no papel duro, branco; imagem e cheiro estimulavam o apetite e eram tão saborosos quanto a pizza do pasteleiro chinês. Estiquei a mão em direção ao embrulho e, como a moça não reagiu, tomei-o nas mãos. Não pesava quase nada e tinha a mesma forma do prato, mas a superfície lisa não tinha mancha nem cheiro de espécie alguma. Reparei que a um canto, com letra miúda, havia uma palavra escrita: Ravenna.
- Você sabe o que quer dizer?, perguntei. Com esse nome só conheço a cidade italiana.
- Não, nunca tinha visto.... Pra dizer a verdade nunca peguei ´isso´ na mão. Ele treme, repetiu.
-  Vai ver tem uma dentadura aí dentro”, disse, rindo, mas ela não achou muita graça:
-   Cruz-credo!  - e se benzeu.
Deixei meu telefone com a moça, que se chamava Ismália, para o caso de Pateta aparecer. Nos dias seguintes, já com novas chaves, a imagem de um pacote chamado Ravenna não me saía da cabeça. Mais que isso: comecei a sentir o cheiro da pizza brotinho por toda parte. Lembrei-me das mãos do meu pai carregando o embrulho, tão fortes na minha infância. Da forma meticulosa com que ele desfazia os nós do barbante, enquanto minha mãe preferia passar a faca e resolver de vez. O pai não: tirava cada nozinho, com delicadeza, depois enrolava o barbante numa das mãos até quase o final; com a outra separava a ponta para envolver o pequeno novelo e enfim guardá-lo na gaveta, ao lado da tesoura, sem nenhuma possibilidade de engastar. Senti muitas saudades daquelas mãos, daquele jeito suave de transformar cada gesto rotineiro num cerimonial, e quando vi estava no quarto de bagunças procurando por velhas fotos, coisa que não fazia desde o início da adolescência; ou seja, há quase quarenta anos.
Meu pai nunca foi um homem estudado, embora tenha me ensinado muito no curto período em que vivemos juntos – ele morreu quando eu ainda era bem menino; depois minha mãe se casou de novo e me deu novos irmãos e um bom padrasto, um homem instruído, médico, mas que, mesmo cuidando de mim com desvelo e atenção, nunca me despertou o amor e a admiração que senti incondicionalmente por meu pai. O médico me levou até a Disney com os novos irmãos (daí o Pateta), comprou roupas novas e caras, trouxe o privilégio de andar de carro para a família e me ajudou a pagar os estudos. Jamais, porém, levou uma pizza brotinho para casa, não sabia lidar bem com os barbantes nem tinha paciência para guardá-los sem deixar enrolar. Se não fosse pelos poucos anos em que convivi com meu pai não teria aprendido a fazer uma pipa, a me interessar pelo conteúdo das palavras (ele adorava recorrer ao dicionário) e muito menos prestar atenção à natureza e seus sinais. Todos esses sentimentos me vinham em turbilhão enquanto vasculhava a caixinha de fotos antigas, e as lágrimas já começavam a escorrer com vontade quando encontrei uma fotografia que tiramos na praça da Estação, há mais de 40 anos – eu devia ter, no máximo, 5, usava um boné caído de lado e uns calções do tipo suspensório. Meu pai conservava o bigode fino e os cabelos bem penteados para trás. Uma das suas mãos segurava a minha, na outra estava a brotinho pendurada.
Fiquei olhando a fotografia por muito tempo, agora chorando sem tentar evitar. Quando parei, passei os dedos pelo papel duro, acariciei a linha da moldura picotada do velho retrato e olhei o verso: num carimbo, ainda bem visível na cor azul, podia-se ler claramente Photo Ravenna, reportagens. Desvirei rapidamente e fixei de novo o olhar em meu pai, sorrindo. Era uma coincidência incrível. Passei todo o final de tarde ali, chamei minha mulher e as crianças e fui contando a eles histórias da minha infância, o jeito do avô deles, alguns de seus pensamentos. Meus filhos riam e se interessavam, faziam comentários do tipo “Eu puxei pra ele, pai?” “Ele sabia fazer aquela rabiola mais difícil?” Estávamos todos encantados, e era tarde quando finalmente fechamos a caixa de fotos e fomos dormir. Nessa noite não sonhei com velhinhas banguelas em protesto nem dentaduras perdidas, mas comigo mesmo, adulto, caminhando ao lado de meu pai. Nós não conversávamos, mas estávamos felizes por estar juntos, lado a lado. Dia seguinte acordei como quem vem de um sono bom, de alma nova, e tinha acabado de tomar banho quando tocou o telefone:
- Por favor, o senhor Marcelo?
- Ele mesmo. Quem é?
- Oh, sr. Marcelo, é Ismália, da viação. Acharam aqui um chaveiro, mas estava enroscado embaixo do banco e não dá para dizer se é do Pateta, porque só ficou um pé do boneco. Tem duas chaves, como o senhor disse....
- Ah.... Tentei ganhar tempo para pensar no que responder.... E o pacote Ravenna, continua a tremer?, perguntei, usando a brincadeira para retribuir a atenção de Ismália ao meu caso.
- O senhor nem sabe.... um funcionário novo da limpeza trocou o embrulho de lugar na estante e com a chuva que deu anteontem a goteira destruiu tudo!
- Sério? E o que tinha dentro?, perguntei, rápido.
- Um monte de papel velho e umas tesourinhas que eram as responsáveis pela tremedeira do negócio. Mas a água foi muita e ficou tudo em pedaços, borrado, até os bichos se afogaram....só sobrou o barbante! O senhor vem ver se a chave é sua?
Respondi educadamente a Ismália que não ia não, muito obrigado. Ela não entenderia nunca, mas eu sabia muito bem o quanto ali já tinha achado. 

(conto premiado no concurso Paulo Leminski/PR para integrar coletânea)